terça-feira, julho 17, 2007

Rua banana, cidade velha

Cinema/Crítica: “Rua Banana Cidade Velha”
MÁRIO BENVINDO CABRAL TEM MÃO PARA FILMAR
O filme “Rua Banana Cidade Velha”, de Mário Benvindo Cabral, cuja estreia assistimos Sexta-feira, 13, no auditório do Centro Cultural Português, de certeza que se inscreve na história do cinema cabo-verdiano, mas há um grande caminho para que ela venha a ser algum paradigma artístico - para além das temporalidades (mas este também nem era o objectivo do realizador)
Praia, 17 de Julho - Uma obra se inscreve na História quando ela não se prende ao próprio tempo em que ela foi criada. A atemporalidade é uma das marcas da verdadeira obra de arte. Daí a dificuldade do documentário, enquanto género cinematográfico, afirmar-se enquanto arte, porque, na maioria das vezes, ele destaca um facto inscrito num determinado tempo. Mas a História do cinema, entretanto, conhece realizadores que escaparam ao tempo, legando-nos obras de conhecido valor artístico. É o caso, por exemplo, de Eisentein, precursor do cinema-propaganda.
O filme “Rua Banana Cidade Velha”, de Mário Benvindo Cabral, cuja estreia assistimos Sexta-feira, 13, no auditório do Centro Cultural Português, de certeza que se inscreve na história do cinema cabo-verdiano, mas há um grande caminho para que ela venha a ser algum paradigma artístico - para além das temporalidades (mas este também nem era o objectivo do realizador).
“Rua Banana Cidade Velha”, enquanto documento audiovisual, presta grande serviço a Cabo Verde, no sentido de afirmar e resgatar o espaço histórico da Cidade Velha para todo o planeta.
O documentário, cujo projecto surgiu em 2005, durante a realização do “África Doc”, foi rodado este ano de 2007, exactamente quando a Cidade Velha ultima os seus preparativos para a sua candidata à Património da Humanidade.
O filme tinha tudo para ser um vídeo-clip, ou até mesmo um audiovisual de cartões postais, com imagens lugar-comum quando a temática é o berço de Cabo Verde, entretanto, Mário Benvindo Cabral prova que tem mão para filmar.
O realizador, de forma inteligente, age como um cidadão de consciência crítica e democrática, com responsabilidade e compromisso social, absolutos, motivo pelo qual o seu filme não pode ser tomado como Institucional.
Nem se pode dizer que a sua obra está a serviço da candidatura da Cidade Velha a Património Mundial.
Mais do que aderir a candidatura, o documentário cumpre a sua função crítica de conscientizar a sociedade cabo-verdiano para os mais diversos aspectos que estão por detrás desta candidatura.
“Rua Banana Cidade Velha” mais questiona do que responde.
Daí o facto de as entrevistas do filme serem antagónicas entre si, com a voz dos representantes do poder público a explicar o óbvio e o simples, ao passo que as vozes dos habitantes é mais complexa, porque enraizada na realidade em que vivem.
O documentário toma como linha da história o guia turístico Diamantino, o seu quotidiano, a sua relação com o trabalho e com as pessoas da comunidade. A câmara acompanha-lhe os passos. Há, entre um e outro episódio, imagens subjectivas, ou seja, o ponto de vista do próprio Diamantino.
Através de Diamantino, conhecemos os moradores da Rua Banana e a comunidade da Cidade Velha de uma forma global. Ficamos a saber o que cada uma delas é, o que pensam sobre a transformação da Cidade Velha a Património Mundial, o que elas estão a fazer para que isso se concretize ou não, e, o que é mais importante, o que elas já fizeram pela sua terra, independentemente desta candidatura.
Portanto, o filme, para além desses dias de Diamantino, e do seu ponto de vista, escapa-se para os factos que constituem o tecido social da Ribeira Grande da Cidade Velha.
Ao mesmo tempo em que vemos os pescadores, os turistas, os meninos, as pessoas, vemos também o que todos eles vêem.
Vemos através dos seus olhos, pelo que, as imagens, afinal de contas, tornam-se a grande força de “Rua Banana Cidade Velha”.
Elas reforçam os conteúdos das entrevistas, principalmente, dos moradores da referida rua, que desconfiam deste momento histórico pelo qual a Cidade Velha está a passar.
Elas entrecortam os diferentes modos de interpretar e de viver este facto com quadros que são pinturas, captados de forma brilhante e montados com muita sensibilidade.
Mas há falhas.
“Falhas de racord cromático”, com mudanças de imagens cujos tons de cores são demasiados diferentes, ou seja, imagens alternadas ora com maior, ora com menor temperatura de cor, interferem de forma brusca na montagem final, entretanto, apesar disso, o documentário se afirma, repetimos, pelo conjunto das suas imagens.
E há falhas no uso excessivo de textos.
A utilização dos textos, claro, ajuda na subdivisão do documentário em partes. Este recurso facilita a introdução de entrevistados, assim como serve de apresentação dos espaços filmados. Os textos, portanto, revelam o carácter didáctico ao mesmo tempo em que reforçam a continuidade do documentário.
Até aí, nada de mais, entretanto, estes textos, por vezes monótonos e até mesmo repetitivos, exactamente por causa disso, em algumas de suas inserções e passagens, acabam por romper estrutura narrativa do documentário.
É onde o feitiço vira contra o feiticeiro.
Se por um lado, o documentário ocupa a sua função didáctica, com a utilização de textos bastante esclarecedores sobre a história da Cidade Velha, por um outro lado, ele escapa aos tradicionalismos e revela a criatividade de Mário Benvindo Cabral.
As mãos do realizador estão metidas em toda a obra. Percebe-se isso facilmente no aspecto linear da mesma, na sua estrutura dialéctica e crítica, nos seus conteúdos históricos, nas suas imagens espectaculares, na sua montagem definitiva, que não deixa o filme ficar como uma nau à deriva, ao contrário, como um bom marinheiro, de muitas viagens, Mário Benvindo Cabral sabe que o mar só se acalma quando o navegador se acalma.
Esta sua calma, aliás, reflecte num filme sereno e agradável. Com depoimentos, entrevistas e imagens que conferem ao filme uma qualidade dinâmica, reveladora e intrigante e que fazem de “Rua Banana Cidade Velha” um bom documentário.

Post-scriptus
A pior parte da sessão, como de costume, ficou mesmo para o final, quando a equipa que fez o filme se apresentou e solicitou ao público para que este colocasse alguma questão, tendo a maior parte dos que se manifestaram apenas felicitado a realização da obra, sem, entretanto, avançar qualquer comentário pertinente sobre a mesma, pelo que, penso eu, se não tinham o que dizer, talvez fosse melhor estarem calados.
É de lamentar ainda que até mesmo Sua Excelência, o Sr. Ministro da Cultura, Manuel Veiga, tenha pegado boleia nestes comentários sem sentido, mas, dessa forma, ao felicitar a equipa, ele se esquivou das críticas implícitas que o documentário revelou.
Também lamentamos que, dentre estes que disseram coisas sem sentido, tenha aparecido alguém com a coragem de declarar, que, se o filme tivesse sido realizado hoje, as opiniões das pessoas com relação a candidatura da Cidade Velha a Património Mundial seriam diferentes, como se fosse alguma obrigação do realizador filmar para actualizar os factos ou tomar partido deles.
Nós, que assistimos a estreia do filme, Sexta, 13, no auditório do Centro Cultural Português, resolvemos passar ao papel estas mal traçadas linhas que escapam ao pensamento e insistem em ficar grafadas, para que as ideias, voláteis, não sejam esquecidas, e para que as palavras, proferidas, não voem, como os pássaros, por mais livres que elas (e eles) sejam.
Nossa pretensão, neste caso específico, é desafiar os leitores deste jornal e os públicos dos filmes, das exposições de fotografias e de artes, das peças de teatro, enfim, das actividades artísticas e culturais desta terra, a reflectir e a escrever sobre as estéticas e as técnicas destas produções, para que, então, sejamos capazes de construir, de forma sólida, a crítica e a história da crítica em Cabo Verde, facto, aliás, demasiado comentado, mas pouco curado, até mesmo por aqueles que sempre estão a manifestar de forma verbal as suas preocupações com relação a esta questão, talvez, porque, afinal de contas, falar é fácil, difícil é fazer, digo, escrever.
Fica, pois, este comentário a título de pós-scriptus.

Francisco Weyl
Carpinteiro de Poesia e de Cinema

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